quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A vida e o modo nos começos do reino de Portugal.

O crime e a bruteza como que transudam de todos os documentos dessa época em que se alude aos usos e hábitos ordinários da vida, e não escasseiam memórias, que a seu tempo havemos de apontar, nas quais se encontra o repugnante quadro de um malvado moribundo, recapitulando à face da sociedade e sem titubear a negra história de uma torpe existência e legando a um mosteiro o fruto das suas extorsões e assassínios, para depois expiar com a tranquilidade do justo. Se, porém, tais espectáculos eram vulgares por aquele tempo em todo o país, imagine-se quais seriam as cenas de imoralidade e ferocia que diariamente se passariam nos lugares fortificados da fronteira, onde quase só dominava o pensamento das assolações e rapinas.
Nada mais natural do que aparecerem no meio desta gente, a bem dizer selvagem, homens de carácter mais sáfaro e duro, para quem o viver à sombra das muralhas de um castelo fosse já sujeição intolerável e que nas brenhas, separados de um ténue simulacro de existência social, buscassem gozar ilimitada liberdade. As rixas entre os homens de armas, os ódios que resultavam da impetuosidade das paixões, as longas vinganças entre as famílias, que muitas vezes não cessavam senão com o extermínio de uma delas; todas estas causas e várias outras deviam povoar os bosques dos territórios disputados entre portugueses e sarracenos de bandos de salteadores, provavelmente compostos de indivíduos de uma e outra crença, unidos pelo instinto do crime, guerreando indiscriminadamente cristãos e muçulmanos, indiferentes à luta do predomínio das duas raças, e atentos só a saciar a própria crueldade e cobiça nas suas correrias e assaltos sem objectivo político
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Alexandre Herculano, História de Portugal, Desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III, Tomo I, Livro II, p. 551, Bertrand Editora, Venda Nova, 1989.]
Até breve.

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