quinta-feira, 31 de julho de 2008

A batalha por Alcácer do Sal.

Gostava que lessem esta passagem de Alexandre Herculano e a saboreassem como imagem nua e crua do que se teria passado na campanha que levou à conquista de Alcácer do Sal, depois de um assédio começado a 30 de Julho e finalizado a 18 de Outubro daquele ano de 1217.

Havia quase mês e meio que Alcácer estava sitiada. A vinda das tropas do Andaluz fora a 10 de Setembro, e os auxiliares cristãos haviam chegado ao campo, como dissemos, nessa mesma noite. Na madrugada do dia 11 os trezentos cavaleiros que desde o princípio tinham assistido ao assédio saíram como exploradores e aproximaram-se dos arraiais muçulmanos. Observaram tudo. Por uma grande distância o solo desaparecera coberto da multidão de infiéis. Perceberam estes a cavalaria que os atalaiava e, alevantando o clamor do combate, correram a persegui-la. Esperaram-nos a pé firme os valentes homens de armas, e ali mesmo se travou uma brava escaramuça. Não podia ser duvidoso o resultado: eram um contra cem. Os cavaleiros portugueses foram obrigados a recuar. Lançando os escudos às costas para se ampararem dos golpes e tiros dos sarracenos, vieram à rédea solta precipitar-se no acampamento, perseguidos pelo exército inimigo, que imediatamente marchara. Entretanto os quinhentos cavaleiros chegados nessa noite montavam a cavalo e, vendo aproximar-se os sarracenos, prepararam-se para romper a batalha. Deviam ser na maior parte templários, porque esta Ordem era, talvez, a mais numerosa de todas e porque debaixo do mando do Mestre dos três reinos da Espanha, Pedro Alvites, aí se achavam reunidos aos freires de Portugal muitos de Leão e Castela. A severa disciplina da Ordem, as solenidades com que entravam nas batalhas produziam necessariamente o entusiasmo nesses ânimos, em geral esforçados, e naqueles que os viam a seu lado. Os esquadrões do Templo ao formarem-se para a batalha guardavam profundo silêncio, que só era cortado pelo ciciar do balsão bicolor (negro e branco) que os guiava despregado ao vento e dos longos e alvos mantos dos cavaleiros que se agitavam. À voz do Mestre, um trombeta dava o sinal do combate, e os freires, erguendo os olhos ao céu, entoavam o hino de David: Não a nós, Senhor, não a nós! mas dá glória ao teu nome! — Então, abaixando as lanças e esporeando os ginetes, arrojavam-se ao inimigo, como a tempestade, envoltos em turbilhões de pó. Primeiros no ferir eram os últimos em retirar-se quando assim lho ordenavam. Desprezando os combates singulares, preferiam acometer as colunas cerradas, e para eles não havia recuar: ou as dispersavam ou morriam. A morte era, de feito, mais bela para o templário que a vida comprada com a covardia. Bastava que não atingisse ao tipo de valor humano, como os velhos guerreiros da Ordem o concebiam, para ser punido por fraco. A cruz vermelha, distintivo da corporação, com o manto branco sobre que estava bordada tiravam-se-lhe ignominiosamente, e ele ficava separado dos seus irmãos como um empestado. Obrigavam-no a comer sobre o chão nu: não lhe era lícito o desforço das injúrias e nem sequer castigar um cão que o maltratasse. Só depois de um ano, se o capítulo julgava a culpa expiada, o desgraçado cingia de novo o cíngulo militar para ir, talvez, na primeira batalha afogar no próprio sangue a memória de um ano de afrontas e de suplício.
Qual seria o estado intelectual de homens habituados à exageração de tal disciplina fácil é de imaginar. As outras Ordens imitavam, mais ou menos, os templários; dominavam-nas as mesmas ideias, o mesmo entusiasmo ardente, e tanto mais ardente quanto mais as instituições que as regiam recalcavam todas as tendências suaves do coração debaixo de fórmulas severas e tristes. No acampamento junto a Alcácer os freires das três Ordens rivais — Templo, Hospital e Santiago — achavam-se reunidos: tinham de ser julgados uns pelos outros; tinham de se julgar mutuamente; e nunca mais oportuna ocasião se lhes oferecera de vencer com glória ou de perecer nobremente. Estavam, segundo parece, já além do rio: a febre dos combates exaltava os ânimos até ao delírio, e ao erguerem os olhos ao céu para a invocação da partida afigurou-se-lhes ver na imensidão do espaço, a uns, uma cruz brilhante, a qual ofuscava as estrelas que se imergiam no alvor da manhã, a outros, um estandarte em que a mesma cruz se desenhava. Não havia que duvidar da vitória: era Deus que a anunciava
A situação do campo de batalha, a hora a que ela rompia, a marcha desordenada do exército sarraceno, a crença dos cavaleiros cristãos no auxílio celeste, sentimento assaz enérgico para lhes mostrar no espaço uma cruz resplandecente, tudo os favorecia. Defronte de Alcácer, transpondo o Sado para o ocidente, estende-se uma vasta campina, campina funesta, onde, como em outros lugares, os vindouros terão de erguer um altar de expiação ao sangue português aí vertido por mãos portuguesas quando o silêncio da morte tiver pousado sobre nós, e Deus e a história houverem pesado e condenado os nossos deploráveis ódios civis. Foi nessas planícies, segundo todas as probabilidades, que sarracenos e cristãos se encontraram. Os cruzados do Norte tinham ficado impedindo alguma surtida dos sitiados, e à multidão dos infiéis só o opor os freires militares, os cavaleiros leoneses que vieram associar-se à glória ou aos desastres daquela jornada e os homens de armas e peões de Portugal. Mas uma imprevista circunstância favoreceu estes: o Sol nascia, e os cristãos ocupavam o lado setentrional da campina e os montes que, a bem curta distância da margem esquerda do rio, se prolongam ao noroeste. O reflexo metálico das armas e armaduras ia bater nos olhos dos infiéis e dava ao pequeno exército português uma aparência que lhe acrescentava dimensões. Ou fosse efeito do mesmo reflexo dos ferros polidos e dos dourados escudos que multiplicavam a torrente da luz oriental ou fosse o excitamento religioso, capaz de alucinar ainda outra vez os espíritos, os combatentes, ao travarem-se com os muçulmanos, creram ver no ar um tropel de cavaleiros vestidos como os templários que também feriam nos inimigos. Foi terrível o embate. O comendador de Palmela, Martinho, homem pequeno de corpo, mas animoso como um leão, abaixando a cabeça, com o escudo embaraçado na esquerda e na direita o estandarte da ordem, arroja-se ao meio dos esquadrões sarracenos: Pedro Alvites, o Mestre do Templo, leva a mesma dianteira, e os respectivos freires seguem o exemplo dos seus chefes. Os cavalos batem de peitos uns nos outros, as espadas faíscam nas espadas, os escudos retinam contra os escudos, e os elmos e cervilheiras rolam pelo chão rotos e abolados, Os muçulmanos titubeiam: por entre as nuvens de pó confundem-se amigos e inimigos, e uma completa anarquia se derrama pelas fileiras sarracenas, já forçosamente desordenadas pela rápida e dilatada marcha que tinham trazido perseguindo os exploradores. No meio da confusão, aquela numerosa cavalaria chegou a combater uma contra a outra, enquanto os cavaleiros cristãos, por isso mesmo que eram poucos, estavam livres de cair em igual erro. Em breve o desbarato das tropas andaluzas se tornou inevitável: possuídos de terror começaram a fugir, e parte dos fugitivos foram precipitar-se no Sado. Abafados debaixo dos pés dos ginetes e, até, dos troços da infantaria, muitos expiraram sem haver combatido. Perseguidos por espaço de dez milhas pelos cristãos, três dias durou a carnificina, e dois walis, o de Córdova e o de Jaen, ficaram entre os mortos. O cálculo que destes se fez montava de catorze a quinze mil, afora um sem-número de prisioneiros, os quais, ou para lisonjearem seus senhores ou para se desculparem perante a própria consciência de tão vergonhosa derrota, ouvindo falar do auxílio dado aos cristãos pelos cavaleiros aéreos, asseveraram tê-los igualmente visto e experimentado a sua fúria, o que não podia deixar de fortalecer a fé viva da soldadesca na decisiva protecção divina. Entretanto, uma armada de trinta galés que os sarracenos tinham mandado para a foz do Sado, acometida por horrorosa borrasca, lutava debalde com os elementos e era destruída sem combate. Saindo ao encontro dela, a frota cristã só achou ante si as solidões do oceano: as galés inimigas tinham ido a pique ou dado à costa. Ainda em tempos de mais luz tanta fortuna legitimaria a crença no favor celeste, quanto mais numa época em que a credulidade fazia sempre intervir o omnipotente nestes cruéis dramas da matança e de estragos
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[História de Portugal, Desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III, Tomo II, Livro IV, pp. 262-268 — notas críticas de José Mattoso. Verificação do texto por Ayala Monteiro — Livraria Bertrand, Lisboa, 1981.]

Até breve.

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