quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Por aqueles dias...

Combates na Lusitânia.

No rimanço da memória, no tempo em que os cavaleiros eram bravos e expeditos, em que as correrias se faziam à brida e os combates rápidos à guisa de algaras, os homens lutavam pelo terreno e pela reconquista a que julgavam ter direito. E tê-lo-iam?!... As lanças e as espadas cruzavam os ventres, e o ar em volta, desferidos golpes e virotadas, enchia-se com os gritos dos aflitos a redobrarem-se de pasmo e dor, tanto quanto as vidas, que ali caíam, deixavam de ter qualquer valor, não representavam sequer misericórdia, nem sustentavam nenhum peso, mesmo para os que se rendiam. Fosse num campo, fosse no outro, achada ou consumada a vitória. Mantinha-se acesa a lei ígnea do combate, a ferocidade do vencedor, o saque do ouro nos corpos.

Por estes lados, terra de ninguém, mas ainda hoje terra duma beleza infinda, as correrias faziam-se mais pela primavera e pelo verão, altura em que, aos exércitos, era mais fácil transportar, a vau, os ribeiros e os rios, em que pequenas ilhotas se erguiam e faziam valer da firmeza da terra. Era por aqui, por estes lados onde a serrania de Segóvia se ergue, mesmo à minha frente, que as legiões romanas e os lusitanos de Sertório se enfrentaram em rituais de afronta e fingimento. Venceram os expeditos, talvez os menos temerosos — se é que medo havia em qualquer dos lados —, nos que fingiam retirada e se voltaram, à uma, para enfrentar e vencer os que corriam ululando, convencidos de que o inimigo retirava por pavor e por cansaço. Puro engano. “Nunca deves ou procures dar luta a um romano em campo aberto”, sempre o afirmara Sertório aos seus lugares-tenente, também eles romanos, também eles firmes no comando de lusitanos — esses bárbaros que tantos males e mortes lhes tinham causado —, como esse agitado e impetuoso Hirtuleius, que desde sempre acompanhara Sertório, mesmo antes que o general se pusesse na disposição de chefiar os irrequietos e insubmissos guerreiros, espalhados por toda uma meseta da Ibéria central, na luta que travavam contra Roma, e que se-lhe tornara o seu comandante favorito, que liderava a posição lusitana postada no alto daquele castro, e que não conseguiu antever, ou não soube entender, ou não soube lembrar, que as legiões de Lucius Metellus, as que se retiravam do campo da luta, depois de um longo cerco e de várias e infrutíferas arremetidas contra as defesas castrejas, o faziam por pura estratégia, mera conjuntura de guerra, arte ou forma para os conseguir atrair e apanhar em terreno aberto, táctica favorita desde sempre aplicada pelas legiões romanas, por forma a triturá-los sem remissão, nem apelo. Naquele dia de Julho, do ano de 75 a. C., no campo fronteiro ao monte majestoso de que fizeram morada, morto ou moribundo, ficou prostrado um dos últimos dos lusitanos.

Ao olhar o cerro de Segóvia, este maciço arredondado pela beleza da forma e pela singularidade do verde, distingo, perfeitamente nítidos, os ais dos aflitos e dos moribundos, os que, junto à minha mão, foram tragados pela terra e pela secular metamorfose das épocas. Oiço-os vindos das profundidades, do ventre das plantas e das árvores, do silêncio das arredondadas pedras de seixo, sinal, ou testemunho, de que também por aqui correra um rio rápido e sem sorte, que se extinguiu com a correria dos séculos e a alteração do clima. El Niño lhe chamam… À hecatombe!

Mas porque sempre me hei-de lembrar da fúria dos homens, do grito dos aflitos, do terror das legiões?!... Melhor fora que beijasse os leitos aos pouquíssimos rios ainda límpidos ou à terra enunciadamente sagrada que por estes lugares correm e se anunciam.
Melhor fora, como lembrança à nossa sobrevivência.
Pedro Alvites

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